
O corpo é uma fruta que demora a morrer, ao menos o meu, durou mais que o esperado. Intuí muito prematuramente a semente de que era feita, um caroço desconjuntado espinhoso e de odor possivelmente repelente. Pois a ojeriza do Outro parecia um aviso ou presságio, nada de bom ou muito pouco de bom poderia sair daqui. Não foram um ou dois eventos isolados, seguidas e repetidas percepções calcadas em anos de observação de faces contraídas, testas franzidas, olhares de preocupação, maldições religiosas e morais, surras, invasões, escurraços, admoestações de todo tipo. A estrada é longa, o caminho é deserto. E o lobo mau passeia aqui por perto. E não é que estavam certos? Os caninos estavam próximos. E para piorar (?) sempre gostei de ser menina. Uma menina sagaz, sorriso maroto, uma cara de quem apronta, que vai dar trabalho, amorosa, calorosa, gentil, com paixão por usar rabos de cavalo e óculos escuros, mini-saias, soltando “pérolas”, deixando os adultos em calças curtas. Ao mesmo tempo em que se acha gracioso menininhas assim, de imeadiato tentam castrar essas garotas, constranger. Foi precisamente o que concluí. As caras, os roxos, os beliscões, chacoalhos e marcas, o escárnio das salas de aula, as palavras duras, punições inevitáveis, é esse o destino das meninas atrevidas e curiosas, a lição mais dura de todas, a contenção absoluta. É dar a elas o apetite mais voraz e não poderem comer, a natureza dar a pele macia e não desejarem o toque, é dar-lhes um coração imenso e poderem demonstrar tão somente beijos comedidos, roubados e secretos. Me foi apresentada pouca possibilidade de ser outra coisa além de menina que busca aventura e é punida por buscar prazer, no cristianismo e na dieta, não há nada mais pernicioso. A outra possibilidade até então apresentada, era questão de honra não ser. Prometi assim que tive dissernimento jamais me comportar como aqueles lobos de genética desvairada a Canis lokus familiaris. Ou só podia ser vítima, ou só podia ser algoz. E não é que estava(m) errada(s)? Com ajuda de quem me olhou e respeitou, quem escutou e ficou, abraçou e amou de volta e em especial, com a terapia e um olhar franco sobre o que realmente sou é que emerge Felis silvestris catus, uma felina, nem sempre andando de gatinhas. E nesse corpo mais destravado, mais aberto, mais exposto, com maiores receptores de sentido, absolutamente tudo tem se tornado mais sensorial e motivo de gozo. O marco mais impactante foram semanas atrás, quando um amor me levou para comer um risoto de cogumelos e experimentar Cosmopolitan, desmanchei e gemi no fumegante prato, no gelado-quente-cítrico daquele copo de boca larga e haste fina. Eu não preciso mais ter medo de entrega e perder o controle porque já tomei posse do meu corpo, logo, a hipervigilância não se faz necessária, só gera cansaço e é o inverso da proteção e segurança. Com esse novo corpo e bigodes sensíveis sentei num sofá e ganhei carinho na orelha com um velho conhecido, abri a blusa, recostei num peito e ouvi a batida de seu coração, deixei sentir.
Ontem no trabalho, em surpresa fizeram um bolo, é mês de meu aniversário. Vem aqui Deborah, quero te mostrar um negócio. Estavam colegas de trabalho todas lá. Corei. E esse é um fato novo. Agora, fico corada, as palmas começaram, chorei, em choque, grata. Aprovação e carinho grupal, em especial dos grupos de vivência cotidiana como trabalho e faculdade mexem demais com meus brios. Estou habituada a ser o bicho raro interpelado sem cuidado ou com pressa demais (você é diferente, exótica, me fala como você faz sexo). Eis que começam uma sucessão de coisas boas, nas quais, os sentidos aguçados dão uma série de prazeres em níveis inimagináveis e olha só que fantástico! Faz muito tempo que não sinto dissociação, ao contrário, me sinto fortalecida, segura, em posse do meu corpo e própria história, se alguém não gosta ou não quer mais, a vida está caminhando, meus projetos, concursos, leituras, vontades, encontros, estão a todo vapor. É calorosamente bom ter abraços sinceros, não ter vergonha de ser transparente ao ponto de corar, de chorar em público, ter coração grande, ter bolo, chegar naquele amor após sair do trabalho às dez da noite e ele abrir a geladeira Olha, comprei o suco que você gosta. Comprei manteiga e parmesão para o macarrão. Ser alimentada, cuidada, nutrida, incentivada, abraçada, beijada, vista, aplaudida, celebrada pelos meus, pelo meu próprio percurso e mérito. The dog days are over, os dias de rugido, calor, manha, coragem e ronrono apenas começaram.